Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

OMG! She's a book reviewer!



Terça-feira, 15.10.13

Valter Hugo Mãe - A Desumanização


O Filho de Mil Homens deixou-me saudades que se foram agigantando nestes dois anos de espera. Foi duro, mas deixem-me que vos diga, não foi em vão, A Desumanização é um livro imperdível. Claro que isso não faz com que seja fácil falar sobre ele, pelo contrário, mesmo depois de o ler duas vezes foram precisas outras tantas semanas para arrancar a ferros este texto miserável que vos deixo.
Não podemos definir este romance apenas como uma história dramática vivida nos inóspitos fiordes islandeses. Que nos falte a coragem para sujeitá-lo a tão débil definição quando se trata de um livro que fala, entre tantas outras coisas, de crescimento, de insularidade, de luto, de solidão, de amor, de medo, de busca de identidade. Muito de pessoas, outro muito de paisagem. Mas esta Islândia nunca se contentaria em ser somente um cenário, é uma personagem forte, esmagadora, também ela em transformação descontrolada, que condiciona a existência de todas as outras personagens («Era igual a querermos controlar o nervoso da Islândia. Da Islândia inteira. Um nervoso que se nos impunha, tão vulneráveis e para tudo deixados à deriva.»).
A narradora, Halldora, é uma menina de 11 anos que perde a irmã gémea («Foram dizer-me que a plantavam.») e se vê obrigada a descobrir uma forma de persistir com essa falha, com essa metade desarraigada da sua pessoa, no seio de uma família despedaçada pela tristeza. Amando um pai esvaziado («(...) era agora um homem encurralado. Impotente. Com os nervos a toldarem-lhe as ideias. Ainda generoso, mas confuso. Não escapava de si mesmo. Andava singular, e singular se predava, se abatia. Sozinho, o meu pai seria suficiente para se consumir. Para se acabar.») e defendendo-se de uma mãe que o sofrimento tornou cruel.
Halldora cresce em carne viva, «atrapalhada com ser ainda criança e ter dentro toda a dor do mundo». Sem orientação, consente que a inocência da infância se extinga («Não me ajudavam a regressar à infância. À desimportância da infância.») e, muito mais rápido do que merecia, torna-se mulher («Era uma mulher tão completa quanto apenas a tristeza as sabia fazer.»). Assistimos impotentes às suas escolhas questionáveis, próprias da adolescência, e vemo-la perder-se entre as incertezas do que queria («(...) confessei que me vinha ao coração uma vontade muito grande de partir o corpo. Alguém afirmou que eu me viciara na duplicação. Não tinha identidade própria. Era uma aberração. Queria fugir. Quem quer fugir já metade foi embora.») e a convicção do que não queria. E o que Halldora (e Sigridur) não queria(m) era continuar a ser aquilo («Escutaria a tristeza dos nossos dias. Recusava-se a nascer para aquilo. Para ser o que éramos nós.»).

Um romance inesquecível escrito em frases curtas que não são mais do que versos de poemas ligados por vírgulas ou pontos finais numa linha contínua. Frases curtas que se organizam em capítulos igualmente curtos. Apesar de ser um livro profundamente triste, houve espaço para deixar transparecer um pouco do humor de Valter Hugo Mãe. Tinha de existir esta tia «solteirona e larga, como uma mulher que comera um urso sozinha. Ressonava como se o urso ainda estivesse a refilar dentro dela, reclamando que o deixasse sair.». Era preciso sorrir no meio de tanta tristeza opressora.

Gudmundur diz que «A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro. (...) Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos dois. Para que um veja e o outro ouça.». O propósito de um livro também só se cumpre se existirem ao menos dois. Para que um escreva e o outro leia. No entanto, só a beleza pode distinguir e enaltecer uma obra. A deste romance existe, é real porque a posso partilhar convosco. Não tarda seremos muitos, a ler, a partilhar, e a provar que a literatura torna o Mundo todos os dias um bocadinho mais bonito. Ainda que ele esteja, efetivamente, a desumanizar-se.
 
 
Citações:
 
«Por serem ingénuas, as ovelhas levavam os corações puros que apenas suportavam a alegria de comerem do chão sem surpresas.»
 
«Fui confirmar ao meu pai que descobrira a pânico. Um instante em que o interior nos vinha à pele estarrecido com o nojento das entranhas.»
 
«Quando falo, não entrego nada. Deixo mesmamente despido quem tem frio e não encho a barriga dos que têm fome. Quando falo, o que faço é perto de não fazer nada e, no entanto, cria-nos a sensação de fazer tanto.»
 
«Talvez tivessem sido os pássaros mais tristes quem levara os lagos para os topos difíceis das montanhas. Apenas os pássaros poderiam ter sofrido tanto em tão altos e distantes lugares.»
 
«Ali me sentei, nem chorando, descansando os braços do berço triste que haviam feito.»
 
«Disse-lhe que não aceitava mais ser criança. As crianças não sepultam filhos. Quem sepulta um filho não tem idade.»
 
«E acreditar que deus se ocuparia também dos nossos destinos era uma casmurrice, talvez. Uma pretensão toda a dar-se importância. (…) Deus certamente bocejaria se assistisse ao espectáculo pequenino das nossas vidas. Estaria indubitavelmente olhando para outro lado, para outro lugar. (…) Deus devia estar ocupado com mais gente. Lugares de mais gente. Onde verdadeiramente alguém se revelasse excecional e admirável.»
 
«Os livros podiam ser atentos ou desatentos ao modo como contavam. Nós, inspecionando muito rigorosamente, achávamos melhores aqueles que falavam como se inventassem modos de falar. Para percebermos melhor o que, afinal, era reconhecido mas nunca fora dito antes. Os melhores livros inauguravam expressões. Diziam-nas pela primeira vez como se as nascessem. Ideias que nasciam para caberem nos lugares obscuros da nossa existência.»

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Inês às 22:01


10 comentários

De Anónimo a 15.10.2013 às 22:59

Eu nunca li Valter Hugo Mãe, sei que para ti é imperdoável, mas eu só ouço pessoas que lêem e falam dos livros dele com uma enorme paixão pela escrita dele que eu tenho medo de não sentir tudo isso, é que parece que ler este autor e não sentir tudo isso não vale a pena.
Mas hei-de arranjar coragem e ler.

Joana

Comentar post



Eu e as redes sociais

Facebook
Instagram
Goodreads
Twitter

No baú

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D

Pesquisar

Pesquisar no Blog  

Mais sobre mim

foto do autor