A intensidade e a diversidade de emoções que este livro provoca faz com que seja difícil falar sobre ele. É, aliás, cada vez mais evidente que devemos desistir da tarefa de tentar rotular Afonso Cruz. Não é só talento, é uma incrível capacidade de surpreender, de nos levar em poucas linhas a passar da introspeção ao riso, da angústia ao reconhecimento de certos padrões sociais que nos envergonham.
A história destes quatro sem-abrigo que partilham as ruas e a miséria está muito mais próxima de nós do que gostamos de acreditar. Faça-se um grande SOS nas avenidas. Ainda assim, talvez não haja quem nos salve, porque não há quem queira ver.
Citações:
«Andamos a regar flores de plástico, é isso que fazemos. Temos coisas que não servem para nada. É tudo plástico. (...) Temos coisas, em vez de tentarmos ser felizes, substituímos a vida por plástico, (...). Trabalhamos para regar uma vida destas.»
«Só papéis, há papéis em todo o lado. Burocracias e tal. Foda-se! Um dia morremos e vemos Deus cara a cara e percebemos: olha, é o Kafka.»
«Couraçado Korzhev: Tenho medo que Deus não veja muito bem, que não tenha janelas e não veja o que se passa cá em baixo. Todos os dias ando uma letra.
(...)
Vejo no mapa que ruas tenho de percorrer até ter, por exemplo, a letra "R". Vejo que itinerário tenho de percorrer para fazer essa letra. Quinhentos metros de uma avenida, viro à direita num largo, volto à avenida principal, apanho uma oblíqua para fazer a perna do "R". Vou escrevendo frases que se vejam do céu, blya, frases gigantes que consigam ler-se, mesmo quando não lemos bem ao perto.
(...)
Lili: O que vais escrever agora?
(...)
Couraçado Korzhev: Hoje é um percurso em "v". Vou escrever "vai-te foder".»