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Verão Sem Homens é um livro sobre mulheres. Mulheres, com ou sem homens. Mulheres que têm a capacidade de ser, em simultâneo, amantes, loucas, sensatas, mães, filhas, confidentes, pensadoras, determinadas, frágeis, teimosas, subversivas, resistentes. Mulheres que são isto e tantas outras coisas que, enquanto mulher, não tenho tempo, vontade ou paciência para continuar a enumerar.
Com enorme tacto, Siri Hustvedt criou personagens femininas em todas as fases da vida: da infância à extrema velhice, passando tumultuosamente pela adolescência e sobrevivendo aos dramas do início da vida adulta e às crises de meia idade. Não se promete ao leitor que chegue ao fim e fique a conhecer melhor esse género (até porque a autora, sendo mulher, tem a sageza necessária para perceber que essa tarefa, nem uma mulher, possuidora de todas as características enumeradas em cima, poderia levar a cabo), mas os mais humildes saberão agradecer a oportunidade de poderem vislumbrar um cantinho desse infinito universo feminino, caótico e complexo.
Este romance é, ele mesmo, uma mulher. Errático e de humores variados, salta facilmente de um tema banal em estilo corriqueiro para uma discussão filosófica, não respeita cronologias e não se inibe de descer ao mais depressivo discurso de autocomiseração para logo a seguir engatar em apontamentos cómicos sobre as ironias da vida.
É um bom livro. Culto, cheio de poesia, que respira intelectualidade, mas mentiria se dissesse que o achei arrebatador.
Citações:
«(...) reagia muito mais diretamente ao indireto; ou seja, as suas verdadeiras emoções só vinham à superfície quando medidas pelo irreal.»
«Não que não haja diferenças entre homens e mulheres; é quanta diferença essas diferenças fazem, e como escolhemos enquadrá-las.»
«Tinham-se conhecido no clube de leitura no dia em que a Abigail chocara os restantes membros ao declarar o romance que estavam a ler, e que tinha ganhado o Prémio PULITZER, um perfeito «monte de trampa fedorento», um veredicto a que a minha mãe não se oporia mas que teria expressado de maneira diferente.»
«Uma comédia depende de parar a história exatamente no momento certo.»
A 20 de março de 1995 eu tinha 11 anos e é estranho que não me lembre de ver na televisão imagens do atentado em Tóquio. O nome Aum Shinrikyo também não me dizia nada, por isso este livro foi para mim, em vários aspetos, uma revelação. Conhecer os contornos de um ataque com gás sarin no metropolitano mais movimentado do mundo e tentar perceber melhor a mentalidade japonesa foram argumentos suficientes para me entusiasmar.
Esta edição junta dois livros que foram publicados no Japão em anos diferentes: o primeiro contém testemunhos de vítimas, familiares e equipas de socorro; o segundo de pessoas que estiveram ligadas à Aum, a seita religiosa a quem foi atribuída a autoria do atentado. Se a primeira parte do livro foi a mais emotiva, a segunda foi a mais elucidativa e perturbadora.
Murakami soube vestir estes testemunhos com o guarda-roupa de um romance e imprimiu-lhes o ritmo que vulgarmente associamos à ficção. Vivi, como se lá tivesse estado, os acontecimentos dramáticos aquela segunda-feira de manhã, fiquei a conhecer os efeitos do sarin, percebi a forma como as equipas de salvação atuaram e consegui traçar um retrato mais preciso do típico cidadão japonês.
Impressionou-me o seu sentido de dever enquanto trabalhador, o individualismo e inesperada desorganização em situações de crise, a calma e a confiança que depositam na justiça («Faço um esforço para não odiar a Aum. Deixo-os nas mãos das autoridades. (...) Não tenho o menor interesse no veredicto ou no castigo. Isso é com o juiz.»). Sem nada conhecer do Japão - esse lugar estranho - fiquei com a ideia de serem um povo atento ao detalhe, talvez um pouco supersticioso («Olhando para trás, tudo começou porque o autocarro estava adiantado dois minutos») e, sobretudo, com uma elevada espiritualidade.
No entanto, nenhum testemunho, nem sequer as intervenções do autor no prefácio e restantes apontamentos, parecia conseguir responder às questões basilares que iam surgindo à medida que prosseguia com a leitura: haveria um motivo, e qual seria, para se levar a cabo um ato indiscriminado como aquele? Como é que a Aum funcionava? De onde vinha o dinheiro? Como se explicava o sucesso de uma seita à qual acabaram por aderir cerca de 10 mil japoneses? Claro que parto do princípio que no Japão, à data de publicação do livro, todos estivessem familiarizados com os princípios da Aum, não só pela sua notória popularidade antes do atentado, mas porque depois dele não se deve ter falado noutra coisa. Porém, o que lia não estava a ser suficiente para me enquadrar na realidade espiritual dos que aderiram a esta seita e foram capazes de cometer tamanha monstruosidade e isso deixou-me, durante muitas dezenas de páginas, bastante confusa.
Só perto do final se fez luz e fui transportada para um universo paralelo. Um universo onde pessoas insatisfeitas e inadaptadas foram arrebatadas por um discurso lógico baseado numa realidade distorcida («O triste facto é que a linguagem e a lógica, separadas da realidade, têm um poder muito maior do que a linguagem e a lógica da realidade»). Pessoas que executaram todo o tipo de tarefas para «acumular mérito», sendo essa a única forma de obterem a «energia» necessária para se «elevarem a um nível superior» («(...) na Aum havia a ideia de que se tinha de passar por todo o tipo de provas duras e superá-las.»), que doaram todos os seus bens e renunciaram ao mundo secular para mais rapidamente «atingirem a libertação» e que depositaram o seu «Eu» nas mãos de um líder «iluminado» em quem confiavam cegamente.
Este é um retrato inquietante dos problemas que podem causar o descrédito na sociedade atual e a falta de integração. Na verdade, em qualquer momento, em qualquer lugar, pode aparecer um Shoko Asahara bem falante que prometa mundos e fundos e que reinicie o processo. E o próximo passageiro no metro podemos ser nós.
Mario Vargas Llosa desviou-se da ficção para reunir algumas crónicas e sistematizar algumas das suas convicções relativamente ao estado da nossa civilização, sobretudo no que diz respeito à cultura. Temos grandes divergências ideológicas e isso deixava-me de pé atrás, mas não tinha como fugir a este livro, esta coisa da «civilização do espetáculo» intriga-me muito.
Vargas Llosa define-a como «a de mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é ocupado pelo entretenimento». Logo a seguir acrescenta que considera-o um ideal de vida «perfeitamente legítimo» e nisso estamos de acordo. O problema, continua, é esta forma sistemática de nos rodearmos de distrações para «não nos aborrecermos, evitarmos o que perturba, preocupa e angustia». Resumindo, a cultura vigente alheia-nos de pensar. Por isso preferimos mensagens rápidas, sintetizadas, com realidades óbvias ou bem explicadas, com imagens em vez de letras que nos poupem até do uso da imaginação.
Deixamo-nos influenciar e não nos importamos que decidam por nós, pior, secretamente até gostamos. E quem é que dita as tendências e tolda a opinião pública? Cantores, jogadores de futebol, participantes em reality shows. O mediatismo substituiu o valor intelectual nas situações mais bizarras (Jardel eleito deputado estadual?). Esta é a era em que o marketing e a propaganda são mais importantes para vender um produto do que a sua qualidade inerente.
Identifico muitas destas observações, mas não posso concordar com todas as acusações feitas, principalmente quando se fala em insensibilidade e bisbilhotice extrema. O exemplo dado é forte: em pleno estouro da crise económica em 2008, enxames de paparazzi esperavam que o primeiro broker se atirasse de um arranha-céus. Mas a raça humana não foi sempre assim? Há centenas de anos, não nos juntávamos aos milhares para assistir em êxtase a uns quantos hereges a serem queimados na fogueira? E as cortes? Não eram um antro de bisbilhotice? Insensíveis e bisbilhoteiros, sim, mas isso não é de hoje.
Pegando sempre no pressuposto de que o que interessa a esta civilização é o entretenimento, são vários os assuntos abordados: a morte do erotismo, o jornalismo sensacionalista que se pratica («as coisas agravam-se se o jornalismo, em vez de exercer a sua função fiscalizadora, se dedicar sobretudo a entreter os seus leitores, ouvintes e telespectadores com escândalos e bisbilhotices.»), a imoralidade na política e a indiferença dos cidadãos que a encaram com «a resignação e o fatalismo com que se aceitam os fenómenos naturais». O último capítulo versa sobre religião e o autor dá a sua opinião sobre a importância da espiritualidade.
Quero salientar um ponto que me é caro: a democratização da cultura. Somos ambos a favor, «a cultura não podia continuar a ser o património de uma elite, uma sociedade liberal e democrática tinha a obrigação moral de pôr a cultura ao alcance de todos, através da educação, mas também da promoção e da subvenção das artes, das letras e restantes manifestações culturais». O principal erro foi termos nivelado por baixo, achámos que, para chegar a todos, a cultura tinha de se tornar mais acessível («um certo facilitismo formal e a superficialidade do conteúdo dos produtos culturais se justificavam em virtude do propósito cívico de chegar ao maior número. A quantidade a expensas da qualidade.»). Rotulámos a Humanidade de estúpida, colocámos a matulona na piscina das crianças.
Não acho, como o autor, que este seja um problema sem solução. Até porque ela é óbvia: para sair desta chafurdice basta saber pensar. Ninguém nos vai ensinar a fazê-lo, porque não é conveniente, mas também não é preciso, a biologia soube assegurar os meios.
Discutir. Ter uma opinião. Escutar, ver, (ler), com a mente aberta mas assegurando um pensamento crítico. Definir valores. Saber julgar. Questionar cada afirmação. Ou parágrafo.
Nunca, nunca, anuir sem pensar. Esse erro crasso, e preguiçoso, foi precisamente o que nos fez chegar aqui.
Citações:
«A raiz do fenómeno está na cultura. Melhor dizendo, na banalização lúdica da cultura reinante, em que o valor supremo é agora divertir-se e divertir, acima de qualquer outra forma de conhecimento ou ideal. As pessoas abrem um jornal, vão ao cinema, ligam a televisão ou compram um livro para passar bem o tempo, no sentido mais ligeiro do termo, e não para martirizar o cérebro com preocupações, problemas, dúvidas. Só para se distraírem, esquecerem-se das coisas sérias, profundas, inquietantes e difíceis e entregarem-se a um devaneio leve, agradável, superficial, alegre e saudavelmente estúpido. E há algo mais divertido do que espiar a intimidade do próximo, surpreender um ministro ou um deputado em cuecas, averiguar os deslizes sexuais de um juiz, verificar que chapinham no lodo aqueles que passavam por respeitáveis e modelares?»
«Os homens empenham-se em acreditar em Deus porque não confiam em si mesmos. E a História demonstra-nos que não lhes falta razão, pois até agora não demonstrámos ser fiáveis.»
«No passado, a cultura foi frequentemente a melhor chamada de atenção para semelhantes problemas, uma consciência que impedia que as pessoas cultas virassem as costas à realidade crua e dura do seu tempo. Agora, acaba por ser mais um mecanismo que permite ignorar os assuntos problemáticos, distrair-nos do que é sério, submergir-nos num momentâneo "paraíso artificial", pouco menos do que o sucedâneo de uma baforada de marijuana ou uma linha de coca, isto é, umas pequenas férias de irrealidade.»