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«- Está, de facto, com um aspecto cansado. Há aí um professor peruano que tira os quebrantos e explica como se captam os pólos de energia cósmica.»
À sugestão de Eduarda, Jorge responde com a incrível metáfora do alpinista.
«(...)
- (...) Escuta:
Ia um alpinista a trepar por uma escarpa, já com muita dificuldade e cansaço. Passara os pontos mais difíceis do percurso, tinha-se mesmo visto de costas para o solo, prestes a desprender-se, numa inclinação traiçoeira. Mas lá progredia, lentamente, palmo a palmo, em árdua luta com as pedras e com a gravidade. Uma vez por outra, resvalava, fragilmente suspenso sobre o abismo, pelas suas cordas e espias. Sofrera vertigens e cãibras. Ele não via o cimo do monte. Apenas tinha de trepar, porque, sendo alpinista, era isso que lhe competia. Na parede rochosa, quase lisa, ia tacteando, saliência a saliência, concavidade a concavidade. Já subira aí uns cinquenta metros, quando, de repente, sentiu um impacto na pedra, com um estalo, por cima do ombro direito. Lá de baixo, alguém estava a alvejá-lo com uma fisga.
(...)
- O que eu tentava explicar-te, através de uma imagem, que te será decerto mais fácil de apreender que os raciocínios, era isto: Passámos séculos sanguinolentos a esforçar-nos, com riscos, com retrocessos, com pequenas vitórias, com grandes derrotas, até nos içarmos, a pulso, alguns palmos acima do irracionalismo. E vens tu e pessoas como tu e quando nós pensamos que a ascensão está garantida, zás!, desatam a atirar pedradas.
- Mas que mal é que eu fiz? Que mal é que eu fiz?
- Atreves-te a falar no Zodíaco em minha casa, quatrocentos anos depois de Pico della Mirandola! Atreves-te a negar milhares de anos de civilização que custaram muito a ganhar, ouviste?»
Mário de Carvalho em Era Bom Que Trocássemos Umas Ideias Sobre O Assunto
Amanhã é o último dia para participar no sorteio. Corram!
Nunca tinha lido Philippe Claudel e talvez nunca lhe tivesse pegado se não me tivessem recomendado todos os livros dele - este em particular - tão veementemente. Disseram-me para esperar um ambiente pesado e alguma loucura. Relativizei o ambiente lúgubre por ainda trazer comigo os traumas da guerra civil nigeriana em "Meio Sol Amarelo", mas todas as descrições - reforçadas quase sempre com dupla adjetivação - remetem de facto para uma atmosfera cinzenta, sombria e melancólica. O protagonista, um velho, muito velho, que assistiu à morte de toda a família e se viu obrigado a refugiar-se num país que não conhece e onde falam uma língua que não percebe, reforça a soturnidade desta novela.
A neta recém-nascida que traz junto ao peito e de quem cuida como se nela se concentrasse todo o passado e todo o futuro é o elemento contrastante que acalma, que transmite serenidade e a certeza de que tudo está e ficará bem. É a ela que vai buscar a vontade imensa de continuar, de suportar no fim da sua vida um recomeço que o marginaliza.
Sentar-se num banco, num dia frio, e conhecer o Senhor Bark mostrar-lhe-á o poder de uma amizade que vai além das palavras que não podem ser compreendidas, com ele revolverá as imagens que traz agarradas à memória: da sua terra, do cheiro dos campos, dos sons das famílias que moravam lado a lado na aldeia que desapareceu do mapa e que estavam ligadas só por partilharem a existência, ali. Esta amizade e o futuro da neta que segura nos braços firmes vão mantê-lo vivo, consciente, e fazê-lo resistir muito para lá das suas possibilidades.
A escrita de Philippe Claudel é limpa, as frases curtas em capítulos curtos guiam eficazmente o leitor através dos diferentes cenários e apresentam-lhe as personagens, uma a uma, demorando-se nelas exatamente o tempo suficiente e necessário. É desta forma que resta, no fim da leitura, ao leitor, não mais do que o essencial.