... o que perguntariam à menina do
Acordo Fotográfico?
Cruzei-me com o Afonso Cruz e fiz-lhe
a pergunta que me andava a inquietar.
Ainda esta semana conto vir dizer-vos o que ele me respondeu.
Ela acaba de ganhar o The Man Booker International Prize 2013 e os seus contos chegam-me às mãos.
Para começar a ler.
Já.
Este livro foi a maior surpresa do ano até agora. Eu imaginava que fosse bom, mas as minhas vistas curtas nunca me permitiriam entrever que fosse TÃO bom.
Já a imaginação de Afonso Cruz é um completo universo em expansão, não existem limites para aquilo que ele é capaz de criar. Jerusalém no Alentejo? A última ceia com cerveja? O livro que uma personagem está a ler anexado ao próprio livro? Um ensaio sobre a importância das nádegas na formação de um cérebro capaz de pensar? A originalidade desde senhor é assombrosa.
Como vem sendo hábito nesta geração de escritores, voltamos ao ambiente rural, ao provincianismo, à disforia e à injustiça da vida. No meio de tanta tristeza salva-nos o humor negro e a ironia que nos fazem rir com prazer («Pegou numa corda e pendurou-se numa figueira. Foi o mais estranho fruto daquela árvore.»; «(...) e até ela comer a nossa farmácia.»).
O capítulo 37 foi uma das coisas mais bonitas (e mais tristes) que li nos últimos tempos.
Resta-me o pânico de imaginar que posso ter lido o melhor livro dele e o medo de afirmar que, depois disto, a par com Valter Hugo Mãe, Afonso Cruz é o meu jovem escritor português preferido.
Trago uma pergunta cá dentro que grita à procura de resposta, resposta essa que só Afonso Cruz me poderia dar. Preciso de saber, afinal, se Rosa leria este livro. E, se sim, o que acharia dele.
Citações:
«Mesmo os lugares mais rarefeitos, como o espaço sideral e a estupidez humana, são preenchidos por alguma coisa: luz, metais leves, preconceitos, partículas e subpartículas dos átomos, radiações, chavões e telenovelas.»
«Nós só temos um cérebro capaz de pensar na lógica de Aristóteles e na teologia de Tomás de Aquino porque temos umas nalgas extrovertidas.(...) Acaba-se com o traseiro e vai-se o pensamento mais piedoso.»
«É evidente que ninguém é verdadeiramente Deus se não experimentar passar umas tardes a jogar dominó e lerpa nos jardins e nas praças, enquanto desenvolve a bizarra capacidade de apreciar rosé com gasosa.»
«- O amor não se compra.
- Mas paga-se caro.»
Livros
Quando entro noutras casas e sou apresentado a prateleiras rigorosamente organizadas por ordem alfabética, pergunto-me se estes guardarão rancor pelo caos a que os obrigo.
Em ocasiões que lhes parecem aleatórias, escolho dois ou três e levo-os a dar uma volta ao mundo. Habituados à luz desta casa, acredito que essa montanha-russa lhes arregale os olhos.
Regressam estrangeirados, com a companhia de outros livros, novos, a falarem com sotaque. Se tiverem sorte, trazem as capas mais ou menos dobradas. Só por grande casualidade ocuparão o lugar que tinham antes.
Imagino aquilo que contam aos outros, aos que não saíram daqui. Quase de certeza que o seu relato lhes aumenta a ansiedade. Cada vez que me aproximo, haverá alguns a quererem aventura, a desejarem que o meu braço se estenda na sua direção e, provavelmente, haverá outros agarrados ao que conhecem, com medo de amplitudes térmicas desconhecidas.
Eu olho por eles, eles olham por mim. O tempo continua. Sei que têm memória e, quando não estiver cá, espero que não esqueçam o quanto dependi deles. Pertenço-lhes mais do que eles me pertencem a mim.
José Luís Peixoto, em
Jornal de letras, artes e ideias (1 a 14 de maio de 2013)
«A natureza não gosta de espaços vazios e preenche-os como um burocrata preenche requerimentos. Não deixa buracos em lado nenhum. Mesmo os lugares mais rarefeitos, como o espaço sideral e a estupidez humana, são preenchidos por alguma coisa: luz, metais leves, preconceitos, partículas e subpartículas dos átomos, radiações, chavões e telenovelas. A natureza enche chouriços, não há espaço vazio nas suas tripas.»
Afonso Cruz, em
Jesus Cristo Bebia Cerveja