Como se classifica enquanto leitor? A resposta a esta pergunta diz-lhe se está ou não preparado para ler
Dublinesca.
Este é um livro para leitores maduros, leitores que tragam Joyce num bolso e Beckett no outro. É uma homenagem aos grandes autores, aos grandes editores, e (porque não dizê-lo?) aos grandes leitores.
Partilhe a angústia de Samuel Riba, um editor literário aposentado que sofre pelo fim da era Gutenberg, e celebre um
requiem pelo «mundo derrubado da edição literária, mas também pelo mundo dos verdadeiros escritores e dos leitores com talento».
Façamos todos um minuto de silêncio pela morte daquela era em que, pelo bem da humanidade, nunca seria dada a E. L. James uma página em branco.
(silêncio)
Não nos deixemos intimidar por um livro extremamente literário, que dá trabalho, que nos insulta e nos atira à cara o tanto que ainda nos falta ler.
Não se sinta mal, caro leitor, se não conhecer alguns destes nomes, preocupe-se se não conhecer nenhum. Isso significará que ainda tem um longo caminho para percorrer. Mas não tenha pressa, tome o seu tempo, estes escritores nunca ficarão fora de moda e, sendo certo que já morreram, se se puser já a andar é bem provável que ainda os alcance.
Vamos a isso? Encontramo-nos na meta!
Citações:
«Pois um editor literário não acaba por ser um ventríloquo que cultiva à volta do seu catálogo as mais variadas vozes distintas?»
«A Lua brilha, não tendo outra alternativa, sobre o nada de novo.»
«Sonha com o dia em que a queda do feitiço do best-seller dê lugar ao reaparecimento do leitor com talento e que se retomem os termos do contraro moral entre autor e público. Sonha com o dia em que os editores literários possam respirar de novo, aqueles que se mortificam por um leitor activo, por um leitor suficientemente aberto para comprar um livro e permitir na sua mente o desenho de uma consciência radicalmente diferente da sua própria. Acredita que, se se exige tanto talento a um editor literário ou a um escritor, deve-se exigi-lo também ao leitor. Porque não devemos enganar-nos: a viagem da leitura passa, muitas vezes, por terrenos difíceis que exigem capacidade de emoção inteligente, vontade de compreender o outro e de se aproximar de uma linguagem distinta das nossas tiranias quotidianas. (...) São tão necessárias as mesmas habilidades para escrever como para ler. Os escritores desiludem os leitores, mas também acontece o reverso e os leitores desiludem os escritores quando só procuram nestes a confirmação de que o mundo é como eles o vêem...»
Enrique Vila-Matas, em
Dublinesca
«Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais.»
E esse é o motivo por que este livro tinha de nascer. Era bom de mais para ficar esquecido numa gaveta, teria de ser celebrado e nunca nos perdoaríamos se não existisse.
O Livro dos Abraços é feito de pequenos fragmentos de uma memória cheia. Cheia de afetos, mas igualmente cheia de pesadelos que Galeano insiste em não esquecer e que lhe permitem, com propriedade, enaltecer a vida e a liberdade. Pelo caminho presenteia o leitor com pequenas preciosidades como «aquele apagador de vulcões que o diabo deixou zarolho, por vingança, cuspindo em seu olho» ou «Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre as minhas pálpebras. Se pudesse, dizia-lhe que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada na minha garganta».
É também um manifesto político que fará sentido enquanto houver oprimidos e opressores, um grito que expõe as falsas democracias controladas por invisíveis e tiranos mercados financeiros. Galeano, como outros, tem a ditadura literalmente marcada na pele. Tal como o «enfarte agudo de miocárdio» é a «garra da morte no centro do peito», assim a repressão é a mão que em vez de esmagar os subversivos lhes dá força e os empurra contra si.
«Tínhamos comido medo ao pequeno-almoço, medo ao almoço e ao jantar, medo; mas não tinham conseguido transformar-nos neles».
E nós agradecemos. Num Mundo que parece ter-se esquecido das pessoas, é bom saber que há autores que nunca o fazem.
Escrevo assim que acabo de virar a última página. Há livros que me pedem ensurdecedoramente para o fazer. Não sei se vou gostar tanto dele amanhã como gosto hoje, por isso é justo que lhe dê uma palavrinha antes de saber se as saudades apertarão ou não quando os dias se sucederem à nossa despedida.
Não podemos aclamar Nuno Amado como um Escritor. Ainda. Não irei correr para as livrarias sempre que lançar um novo romance, mas afirmo que correrei para as caixas registadoras sempre que a sinopse me agradar. Como esta.
A história deste romance é cativante e a forma como ela se desenrola aos nossos olhos também. Vejo-a transformada num filme com uma fotografia espantosa que saltaria dos Açores às capitais europeias, que guardaria no tempo as expressões destas personagens, ora melancólicas ora eufóricas. Personagens que dão sentido à expressão popular "de génio e louco todos temos um pouco".
À espera de Moby Dick faz o que tem de fazer: comove quando tem de comover, faz-nos sorrir quando é preciso e surpreende-nos várias vezes. Sabe-me bem confessar que a 20 páginas do fim tive de parar para recuperar o fôlego e só depois continuar a ler.
Se me obrigarem a apontar defeitos foco-os na quantidade descomedida de metáforas, em algumas frases demasiado longas que não acrescentam nada a esta belíssima história e talvez nos demasiados clichés. E quando me preparava para acrescentar à lista o exagerado turismo por cidades mundiais também elas clichés, o autor dá-me uma boa razão para retirar o pensamento antes de o dizer em voz alta.
Touché!
Não estou rendida ao escritor mas faço vénias ao contador de histórias. Este é um livro que se recomenda a curiosos. A quem quer saber "em que ecossistema se confundiria uma vaca preta e branca com o seu habitat" ou "quantas lágrimas por dias chora um português" e se este valor "é superior ou inferior à média europeia". Não vão encontrar as respostas, mas ao menos vão saber que houve alguém que deixou estas perguntas imortalizadas num livro.
Se ainda não leram o livro, mantenham-se longe disso.
A sério.
Depois não digam que não avisei.